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Sobreviventes de violência doméstica hoje ajudam vítimas em MT

Quem vê a força evidente no semblante da coordenadora do Centro de Referência Especializado de Assistência Social (Creas) de Santo Antônio de Leverger, Carla Ribeiro Ito, trabalhando no auxílio a mulheres vítimas de violência, idosos abandonados, usuários de drogas e outras situações graves de vulnerabilidade social e violação de direitos humanos, jamais imaginaria que ela também já esteve no papel de vítima e viu a morte de perto inúmeras vezes, pelas mãos agressoras do ex-marido.
 
Carla cresceu na cidade de Hiroshima, no Japão, onde morava com a família. Aos 18 anos, conheceu o ex-marido e passou a morar com ele após cerca de um ano de namoro. O relacionamento era muito bom no início – ela recorda –, de forma que era totalmente inimaginável a possibilidade de o sonho a dois se tornar o pior pesadelo dali a alguns anos. Quando os pais dela retornaram ao Brasil, o ex-marido mudou seu comportamento e passou a praticar todos os tipos de violência: verbal, moral, psicológica e física. Sozinha, com um filho pequeno, em um país onde não existe lei de proteção à mulher, como a Lei Maria da Penha, Carla sofreu em silêncio durante quatro anos, chegando a ser hospitalizada, teve costelas fraturadas, o braço e a mandíbula quebrados, as pernas furadas por faca, sofreu abuso sexual e tentou cometer suicídio várias vezes.
 
Trabalhando como intérprete em repartições públicas japonesas, ela atendia muitas mulheres vítimas de violência doméstica e não compreendia por que permaneciam casadas com os agressores, julgava o comportamento permissivo das vítimas e tentava encorajá-las a denunciar e buscar o divórcio.
 
“Eu criticava muito, até que comecei a sentir na pele. Quando você começa a vivenciar a história, as coisas mudam, eu comecei a entender essas mulheres. O medo faz você se sentir inútil, incapaz, fracassada. Ao admitir que se é vítima, a sociedade te condena”, reflete.
 
Após passar pela experiência traumática e conhecer outras histórias de violência doméstica, Carla Ito afirma que o medo é o sentimento que mantém as mulheres na condição de vítimas. Além disso, o desejo de concretizar o sonho de ter uma família feliz, cultivado no íntimo de todas as mulheres, no seu ponto de vista, também faz com que muitas acreditem que é possível ajudar o marido a mudar de comportamento.
 
“Primeiro vem aquele sentimento de você achar que vai conseguir ajudar a pessoa. Depois vem aquela mistura de sentimento que você quer ficar livre disso, mas você não consegue e o medo trava, não deixa você ter sentido nenhum, você não consegue pensar, fica paralisada. Eu não tinha coragem de falar para ele sair de casa. No dia que eu consegui falar: não quero mais, ele quebrou meu maxilar”.
 
Se eu continuasse lá, ele iria me matar – Mesmo separada do ex-marido, ele continuava frequentando o lar dela para visitar o filho. Nessas visitas, as agressões eram gravíssimas, até chegar ao extremo dele manter a vítima por quatro dias em cárcere privado sendo espancada dentro do próprio apartamento. Foi então que Carla decidiu deixar tudo e ir embora do Japão, por ser a única maneira de salvar a própria vida. Seu apartamento precisou ser isolado pela polícia, o ex-marido foi indiciado por tentativa de homicídio, mas hoje está livre e continua morando no Japão.
 
Muito temente a Deus, ela atribui à força divina o poder de lhe fazer reagir e alcançar os meios possíveis para se livrar do ciclo da violência. Juntamente com o filho de oito anos à época, Carla fugiu do Japão sem documentos – pois o ex-marido havia extraviado seu passaporte e toda a documentação dela –, com o apoio da família, somente com a cópia da passagem e as fotos das agressões sofridas.
 
Um dos momentos de maior inspiração e encorajamento que Carla se recorda foi ouvindo a música “Meu advogado fiel”, em uma rádio brasileira que tocava no Japão e também em um encontro religioso onde ela vislumbrou uma mensagem divina para lhe ajudar a sair daquele martírio.
 
“Minha fé me livrou da morte. Eu sinto que eu sou um milagre na mão de Deus e se eu sou um milagre, eu tenho que ajudar outras pessoas, porque eu não passei por tudo isso para ficar guardado só comigo”, frisa.
 
Ao retornar ao Brasil, Carla foi atendida pela rede de assistência à mulher vítima de violência, passou por acompanhamento psicológico, assim como seu filho, e aos poucos foi conseguindo reconstruir sua vida e superar os traumas da violência. Três anos depois, começou a trabalhar como voluntária no mesmo local onde foi atendida como vítima e hoje é a coordenadora do setor.
 
Atualmente, Carla tem 39 anos, é casada, está gestante e afirma que curou totalmente a dor do ciclo da violência. Ela perdeu o medo do ex-marido, mantém contato com ele e com familiares por conta do filho, de 14 anos, que tem uma boa relação com o pai, ainda que internacional.
 
“Quem olha para mim, não imagina o que eu passei. Se nós buscamos o caminho certo, a gente consegue. Aquele medo que faz você virar uma incapaz, refém de tudo, é possível ser superado. Deus nos encoraja. Por mais que a mulher tenha força de vontade de querer sair, tem que ter Deus, não tem outra saída. Quando você está um caco, Deus te levanta e isso te fortalece muito. Se não fosse Deus, eu não estaria aqui”, desabafa.
 
Supere-se – A advogada e servidora pública Sirlei Theis foi vítima de violência doméstica durante quase nove anos. No casamento infeliz, sofreu agressões psicológicas, morais, físicas e sexuais, de forma que tentou se separar diversas vezes sem êxito. Em 2007, foi diagnosticada com câncer na tireoide e a doença fez com que ela refletisse sobre o relacionamento e sobre a própria vida.
 
“Na hora que eu percebi que poderia morrer a qualquer momento, fiz daquela dor o principal motivo para eu ganhar forças e lutar contra aquela relação sem sucesso. Eu percebi que viver aquela vida não valia a pena”, relembra Sirlei.
 
Após iniciar o tratamento contra o câncer, ela também passou no concurso público e assumiu um cargo na Secretaria de Estado Segurança Pública, onde passou a ter contato diário com policiais e fez vários amigos na corporação. A rede de apoio que encontrou foi o que a fortaleceu ainda mais.
 
“As pessoas mais próximas a mim passaram a ter conhecimento disso e me deram força, eu passei a me sentir protegida. Fui me empoderando como mulher, também tive conhecimento da estrutura da segurança pública no que tange ao atendimento à mulher e vi que os investimentos são praticamente zero. Se formos ficar esperando o poder público para garantir nossa segurança é tempo perdido, porque a demanda é muito grande, não tem como o poder público ter olhos para todas as vítimas”, analisa.
 
Em 2016, Sirlei escreveu o artigo “Eu fui vítima de violência doméstica” e viu que sua história poderia auxiliar mulheres de todo o país a se libertarem do problema assim como ela. O texto ganhou grande repercussão e deu suporte para a criação da palestra Supere-se, que ela profere até hoje, além de ter se tornado uma rede de encorajamento coletivo por meio das redes sociais, desenvolvendo o trabalho de apoio emocional, orientação jurídica, terapia em grupo online e sororidade.
 
Leia as reportagens anteriores da série “Violência contra a mulher: uma tragédia anunciada”:
 
 
 
 
 
Mylena Petrucelli
Coordenadoria de Comunicação do TJMT
imprensa@tjmt.jus.br
(65) 3617-3393/3394/3409
 

20/03/2019 17:53